Um rigor outro
PREFÁCIO
Tenho a compreensão de que a minha relação com a pesquisa não é a mesma de certos colegas que cultivam uma perspectiva cientificista.
Estes colegas poderão julgar que estou errado em orientar pesquisas de estudantes que investem nas suas implicações relacionadas a práticas sociais, por exemplo. Mas aí, creio eu, sendo vocação da universidade produzir conhecimento socialmente referenciado, é essencial que essa instituição conceda um espaço aos profissionais que desejam capitalizar suas experiências, teorizando-as. A elaboração da experiência pedagógica sempre teve seu lugar, desde 1808, na corrente da pedagogia humanista (geistwissenschaftpädagogik). A hermenêutica (Schleiermacher, Dilthey, Weniger, Nohl, Gadamer) é um produto desta corrente, ainda rara na construção das ciências da educação.
Melhor do que todas as outras posturas na relação com o conhecimento, a hermenêutica nos permite a apropriação do campo da educação e da complexidade das situações pedagógicas. O cientificismo, tendo a tendência de reduzir a complexidade do real a algumas variáveis mensuráveis, nutre um gosto secular em frequentemente omitir a realidade prática. Quantos professores, após uma leitura cientificista-reprodutivista de Bourdieu, “entregaram os pontos” diante de estudantes de origem social modesta.Uma vez que a sociologia teria dito que a “reprodução” é real, por que aprovar um estudante que não tenha biblioteca em casa? – foi o que eu ouvi em uma sala de provas em Cherleville, onde trabalhei pela primeira vez como professor.
Compreendo, ainda, que a ciência é uma matéria-prima importante a ser apropriada no momento da pesquisa universitária, não mais que isto. Participam deste trabalho de pesquisa outros fatores numerosos. Vale dizer que, em meu trabalho com a pesquisa universitária, tenho ensejado lugar à tradição do que os alemães chamam de bildung (formação, imagem, forma). Com essa inspiração, retiro da minha prática de professor-pesquisador qualquer possibilidade da cegueira cientificista, porque entendo que aí habita a miséria da ciência produzida pela estreiteza político-espistemológica do seu olhar e de suas lógicas.
É preciso dizer que as ciências humanas só estão no seu começo. Ainda há muito a ser inventado para chegar à complexidade da constituição das suas formas identitárias de rigor.
Todo o trabalho de Jacques Ardoino, por exemplo, sobre a multirreferencialidade em ciências da educação, e de pesquisadores brasileiros como Macedo, Borba, Barbosa e Burnham, utilizando esse conceito nos campo do currículo e da formação, tem sido uma forma de reinventar as questões da Geistwissenschaftpädagogie (pedagogia das ciências do espírito).
É nestes termos que quero macropontuar que me engajo, me implico e me inspiro, como sempre me recomendara Henri Lefèbvre, no trabalho de constituição de um “rigor outro”, como apresentam neste livro meus colegas brasileiros Roberto Sidnei Macedo, Álamo Pimentel e Dante Galeffi, porque entendo queno momento eles fazem parte de forma engajada e implicada, da reexistência que no mundo não “baixa a guarda” para uma idéia de universidade e para um modelo de pesquisa pautados nas recomendações instrumentalistas de Bobbit, forjadas no instrumentalismo educacional do início do século passado, ou seja: a universidade e seu currículo deveriam se organizar como uma linha de produção de uma indústria. Ou como percebe hoje a onda financista e pragmatista, que prega de forma dogmática a redução da pesquisa universitária ao atendimento de encomendas e de palavras de ordem das agências de financiamento e suas (p)referências, trazendo consigo a mais baixa ignorância do que seja a universidade cultural, histórica e criticamente construída.
Felicitações, colegas. É preciso, neste momento de ree-xistência ao obscurantismo universitário, macropontuar com nossas diferenças, a nossa crença aqui argumentada num “rigor outro”, levando em conta o modelo de universidade que caminha para se oficializar, para se normatizar.
Paris, 18 de junho de 2009.
Remi Hess
Departamento de Ciências da Educação
Universidade de Paris Vicenne à Saint-Denis