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COM-VERSAÇÕES SOBRE FORMAÇÃO COM PIERRE DOMINICÉ

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Roberto Sidnei Macedo - UFBA

Joaquim Gonçalves Barbosa - UFSCAr

Sérgio da Costa Borba - UFAL

Sílvia Michele Macedo de Sá -  UFRB

 

ENT – Professor Pierre Dominicé, boa noite! Estamos felizes em vê-lo novamente. Gratos pelo acolhimento. Como combinamos com nossos colegas, estamos aqui para uma conversa sobre a questão da formação e sua complexidade.

PD – Com prazer.

ENT – Professor, há por aqui uma dificuldade marcante no que se refere à concepção de formação como experiência humana e cultural, diria uma certa confusão. Não há um debate profundo sobre esta questão. São raríssimos os educadores que começam a aprofundar essa discussão. Em geral, reduz-se a experiência da formação à gestão dos dispositivos para que a formação possa acontecer, aos espaços escolares e universitários.

PD – Bem, em relação ao Brasil, não sei muito sobre o contexto dessa questão. Tenho algumas reflexões. Mas no meu país e na Europa em geral, constato uma dificuldade de se apreender bem a concepção de formação, porque a concepção que as pessoas constroem não é sobre a formação como experiência humana cultural, mas uma concepção de formação contínua, de uma categoria profissional, dentro das preocupações com as carreiras, os cargos e postos, a formação de professores ou as aprendizagens neste contexto.  Há aqui uma centralidade, quase uma redução, para se falar da formação a partir da vida do trabalho e da produção, suas demandas, envolvendo assuntos como competências, adaptações ao trabalho, adaptação às tecnologias aí empregadas etc. por mais que isso seja importante. Não podemos destituir os empregadores da preocupação com a formação dos seus empregados, entretanto ninguém leva em conta a necessidade mais globalizada de se compreender a formação como experiência. É isso que me preocupa bastante. Tenho encontrado pessoas com dificuldades de conduzir suas questões de saúde, de administração da própria vida, de resolver questões de habitação para si própria, que não sabem fazer a gestão da sua situação financeira, de pensar, inclusive, no seu próprio processo formativo, os problemas relacionais no interior da família, pessoas que não sabem avaliar seu voto, que têm dificuldades de distinguir a necessidade de escolher políticos com credibilidade. Não se tem oportunidade para se abordar esses temas. Eu penso que a formação perdeu sua substância, ficando, de alguma forma, cativa diante das necessidades do mercado em competição, que exige cada vez mais que as pessoas sejam competitivas, “bons profissionais”. Bem, há um domínio em que eu venho trabalhando essa questão que é a saúde. Vem me marcando muito o fato de que quando eu falo da saúde, eu não falo do acesso ao medicamento, ao hospital, ao médico, por mais que saibamos que as pessoas precisam desse acesso. Mas falo mais precisamente de algo que tem a ver com a saúde como uma questão vinculada à formação, por exemplo,aqui no Brasil e na Bahia especificamente, sobre como lidar amplamente com as questões da anemia falciforme que atinge, predominantemente, as pessoas negras. A saúde não é apenas uma questão médica. A medicina interfere e ajuda na saúde das pessoas, mas, na medida em que as pessoas doentes são capazes de compreender e tomar decisões no que se refere ao diagnóstico, ao cuidado, diria mesmo às próprias políticas, isso tem a ver com formação. Eu narrei esta questão num livro onde dialogo com um professor de medicina. Tomei o exemplo de uma jovem mulher com um câncer de cérebro; a cirurgia tinha sido bem sucedida, porquanto o cirurgião foi extremamente competente, e quando ele lhe disse que estava tudo bem, a mulher lhe perguntou: - quando posso voltar para minha casa?  O cirurgião lhe disse:- quando você se sentir bem. A partir daí, ela começou a providenciar um médico generalista, fez psicoterapia para lhe ajudar a reconstruir sua vida, sua filha de 16 anos lhe ajudou a cuidar do dia a dia da casa, seu marido, portador de stress, a ajudou dentro do seu limite. Parte dessas decisões está fora do domínio restrito da saúde. Tem a ver com formação, mas é preciso que a saúde reflita sobre esse processo.

Foi uma resposta longa, mas essas inflexões foram necessárias.

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ENT – Professor Dominicé, uma segunda questão: como o senhor percebe a relação entre currículo e formação? Qual a sua opinião sobre essa relação?

PD – Como trabalho muito pouco com os graus escolares, ou seja, a educação das crianças e dos adolescentes no secundário, ocupo-me muito mais da educação de adultos, pouco posso lhe dizer sobre essas experiências curriculares e formativas. O que posso dizer é que não estou seguro em saber sobre o que é a formação de base, que se apresenta como matérias fundamentais dentro de um currículo. Em Genebra, restando dentro do currículo escolar, há duas coisas consideradas como fundamentais, que são a língua francesa e a matemática. A língua francesa quer dizer a gramática, e a matemática o cálculo, o domínio da resolução de problemas numéricos. Não estou seguro que essas sejam as matérias de base. Para a formação permanente, não é formação de base, essa questão é colocada de modo diferente, porque se trata de pessoas amadurecidas, que estão na vida adulta, na vida profissional, aprendem fazendo.Isso quer dizer que os saberes não são majoritariamente livrescos, são saberes ligados àvida profissional, eles aprendem, às vezes, por ensaio e erro, escutando seus coordenadores, seguindo orientações sobre modos de fazer. A formação permanente é a colocação em ato de saberes experimentados, saídos da experiência. O problema desta formação não é aprender aquilo que alguém ache que é importante porque este alguém é responsável por uma matéria. É um problema difícil. Vejamos um exemplo que é quando animadores de ações culturais entram numa formação de trabalhadores sociais, de gestores. Quando devem entrar num processo de profissionalização responsável por ação cultural, de comunicação interpessoal, eles demandam formação contínua dentro dos seus domínios profissionais. A questão é o que se vai demandar que se experiencie como formação, as pessoas que são especialistas em gerências, que fazem altos estudos em assuntos comerciais, que vão aprender a gestão contábil como um modelo de gestão, que têm que se ajustar a propostas curriculares impostas, é diferente da formação permanente onde os currículos são construídos com as pessoas que estão engajadas num programa de formação. Isso é densamente transversalizado pela questão cultural.

           Quero falar um pouco mais sobre esse assunto. Eu trabalhei para as escolas de agricultura, isto é, escolas superiores podemos dizer, que formam pessoas cujos pais foram agricultores, em geral, e que eles viveram o cultivo de árvores frutíferas. Os agricultores que entram em formação já possuem saberes da experiência, mas os currículos os obrigam a aprender assuntos sobre cereais, sobre o cultivo de ervas, eles jamais trabalharão com isso, porque vão retomar os trabalhos dos pais. Há pais que trabalham com pecuária, com ovinocultura, com suinocultura, eles acompanharam seus pais, jamais trabalharão com a cultura de flores por exemplo.  Isso para mim é um paradigma! Isso quer dizer: para obter um diploma, eu devo demonstrar domínios que são completamente inúteis e que jamais utilizarei. Isso é muito ruim, é muito crítico. Uma outra coisa é o que acontece nas escolas de agricultura. O pai, que é agricultor, sabe muito bem que os professores são engenheiros agrônomos, que nunca tiveram uma fazenda ou que nunca tiveram essa experiência durante meses ou anos, portanto quando os pais perguntam: então, o que os engenheiros disseram em relação aos fertilizantes? Os filhos respondem, os engenheiros disseram isso ou aquilo, os pais, em geral, dizem ironizando: eu já experimentei isso, não funciona. Há um microclima que interfere, etc. Eu encontro este exemplo magnífico, pois há um saber “já lá”. Na escola, se aprendem coisas que não se tem necessidade de saber. A formação inclui os saberes da experiência, não apenas o que os professores desejam dizer. Nem tudo é necessário. E como formar nossos professores a partir dessa realidade?

ET – Professor Dominicé, quando entramos num processo formativo, nós entramos, de toda maneira, na história de vida de uma pessoa, isso que dizer que lidamos com suas implicações sociais, culturais, profissionais. Estamos no centro dessa questão. Como o senhor avalia essa condição?

PD – Penso que estamos sempre implicados e somos implicantes também, quer dizer que não há objetividade que nos coloque a distância. Quando um professor de cirurgia diz aos estudantes de medicina: quando você receber um paciente acidentado, preste atenção para não ser indiferente, porque se você permanece indiferente,você acredita que tem o poder, se continua indiferente, o poder pode cair sobre o sofrimento e agravar o sofrimento. Eu fiz quatro anos de psicanálise com uma profissional extremamente competente, mas jamais percebi alguma vibração dela com a minha história. Isso me deixou extremamente incomodado, até porque eu paguei muito caro! (risos) No caso das  implicações, a indiferença, por exemplo, pode ser a morte, a morte da cultura das pessoas. Mas penso que esse é um problema central. Quer dizer, que como professor eu encontrei vários estudantes que me disseram muito obrigado por você ter feito comentários encorajadores sobre meus trabalhos, ter procurado saber da vida em formação, porque graças a isso que eu continuei. Não podemos olhar a relação pedagógica como anônima. Um colega que é psicólogo social um dia me disse: - Porque você aceita orientar uma monografia? Respondi, porque trata de assuntos que eu me implico. É isso que quero dizer. Um estudante certa vez me disse: - Tenho quarenta e seis anos, quero fazer uma tese sobre a vida adulta, a formação e o budismo. Podia ter dito não, porque esse tema não é um tema caro ao meio universitário. Eu aceitei porque me senti implicado, pois no budismo há uma teoria da aprendizagem que é bastante anticlerical. É isso.

Entrevistadores - Há um conjunto de argumentos que chegaram por aqui, especialmente no campo da educação, tendo como centralidade os conceitos de complexidade e de multirreferencialidade. Como podemos articular esses conceitos no campo de uma formação pró-diversidade, pró-diferença?

PD – Penso que Jacques Ardoino já nos ajudou bastante nisso. Graça a Edgar Morin, a ideia de multirreferencialidade encontrou seus fundamentos num trabalho articulado entre Ardoino e Morin sobre a complexidade. Eu não posso ser, nas questões da formação, apenas um sociólogo, apenas um psicólogo ou um acadêmico. Por exemplo, a narrativa de vida em formação é fundamentalmente multirreferencial. Eu sempre digo, entre na aposentadoria, releia os filósofos, Michel Foucault, Paul Ricouer, para descobrir até que ponto as ciências humanas deformaram a leitura da realidade, porque em realidade é uma leitura monorreferencial.  Desculpem-me por eu dizer isso de forma tão veemente, mas, hoje em dia, eu me autorizo a colocar uma reflexão antropológica, pois entendo que uma antropologia como reflexões sobre a cultura é o que falta muito ao formador. Li Laplantine e aprendi muito com ele, compreendi muitas coisas da formação da perspectiva antropológica. Quando numa narrativa de vida em formação de uma jovem mulher, ela diz que em tendo dois irmãos e pouco dinheiro na família para investir em educação, que seu pai preferiu investir na educação dos seus dois irmãos, como interpretar isso, não pode ser apenas uma redução sociológica, há muito de antropológico também aí!

ET – Compreendemos. Sim! Sim!

PD – Ao mesmo tempo, sei que também há algo de sociológico aí, de psicológico também, essa senhora está chateada com os irmãos, a mãe permanece passiva! A história de vida é interessante dessa perspectiva porque ela exercita a multirreferencialidade e recupera os sujeitos culturais nos processos formativos.

ENT – Para o senhor, qual é o papel do formador num mundo em constantes e (in)tensas mudanças?

PD – Eu aprendi com Paulo Freire que ninguém forma ninguém, que nós nos formamos. Os homens e as mulheres através da intermediação do mundo se formam, eu avalio esta frase como algo fundamental para uma teoria da formação. Eu não formo meus filhos, eu não formo meus estudantes, por mediações eu possibilito os elementos para que eles se formem. Mas olha lá! Isso não significa ausência, espontaneísmo. Existe muita escuta, “escuta sensível” como define Barbier, mas existe proposição, coloco em jogo as narrativas das minhas experiências, elas também são potencialmente formativas. Aliás, eu passei uma jornada com Carl Rogers na Califórnia, junto com uma professora que estava ligada a ele, conversamos muito sobre o problema da avaliação, por exemplo, como fazer diante de estudantes que queriam falar sobre o trabalho dos professores na sua avaliação. Rogers respondeu: - Não sei. Não estou lá neste cenário formativo, portanto não sei responder. Avalio essa resposta como importante, porque Rogers se recusara a dar uma resposta por generalização abstrata. Ele colocara como radicalidade a questão do “contato” que para ele é fundamental nestes momentos, da negociação de intimidades, no sentido amplo do termo.

ENT – Como o senhor avalia a produção científica sobre a formação no Brasil?

PD – Bem, quanto ao Brasil, eu não tenho muito conhecimento, mas tenho amigos brasileiros como Rosiska Oliveira que está ligada ao governo brasileiro no que concerne aos direitos das mulheres, ela trabalhou muito na questão do aborto, ela trabalhou junto ao Congresso e discutiu muito sobre isso. Naquele momento, ela dizia que a mulheres não estavam presentes como deveriam no mundo dos dirigentes políticos. Mobilizada por essa condição ela criou uma instituto para formar mulheres visando esse papel social e a presidente do Brasil Dilma Roussef fez essa formação. Isso quer dizer que você está num país onde há coisas a serem criadas. No meu caso, na “velha Europa” como disse Dominique de Villepan, não temos a mesma realidade. Como criar soluções formativas para a questão das drogas nas favelas brasileiras? Para o assassinato de jovens pobres e negros? Novamente é Paulo Freire que me disse, quando um país está em movimento, quando há abertura, foi ele que me ensinou isso, temos a oportunidade concreta de fazer as coisas mudarem, as mudanças necessárias. 

ENT – E quanto a relação formação e saúde? Essa é uma questão que atinge bem mais os que não têm as condições financeiras para pagar pela sua saúde no nosso país e são marcados por histórias culturais não hegemônicas.

           Não tenho formação em saúde, eu não sei quase nada sobre esse campo. Um colega de medicina me telefonou dizendo uma vez: -- você  é um formador de adultos e eu de diabéticos e de doentes crônicos, eu trabalho com a gestão alimentar dos diabéticos, que devem saber como dosar a alimentação etc. Ele me disse que trabalha com especialistas de doenças crônicas e se depara sempre com problemas de currículo, por exemplo, para trabalhar formativamente com grupos de diabéticos. Mas digo sempre ao meu colega, como você me diz que numa turma de quinze pessoas, eles irão reagir da mesma forma. Aqui está o problema da singularidade. São os pacientes que nos ensinam que ninguém crê nas coisas da mesma forma, essa é uma boa lição didática. Quando um paciente diz, preste atenção, pois há um momento em que você pode sentir uma insensibilidade na mão, bem como você pode andar na praia e pisar num pedaço de vidro e você não sentir, isso é muito importante. Uns dizem que é sempre importante olhar ao redor, outros dizem que não dão importância a isso. Mas é sempre importante nós prestarmos a atenção às singularidades. O que significa que uns tomam medicamentos outros não, que alguns fazem regime, outros não. A clínica, como princípio e prática, nos abriga o respeito à singularidade e seu acolhimento. Há um saber interior. Por exemplo, uma colega me perguntou como agente faz a gestão da nossa voz?  Isso é um saber da interioridade também. Acho que a angústia pode ser uma doença que tenho que tomar medicamentos, mas como lidar e tomar decisões a respeito dela? E quando tomo um avião, como devo fazer com minha angústia? isso é um saber da interioridade.  Hoje, está havendo um retorno a essa realidade. Não há como trabalhar sobre nossa saúde sem os saberes da interioridade.

ENT – Professor, como o senhor percebe as questões identitárias em relação à formação?

PD – Essa  é uma situação difícil, porque os professores, em geral, procuram nas suas ações educacionais seguir as normas, o instituído, se os estudantes que não seguem as normas, os professores acabam obrigando-os a segui-las; então, a singularidade fica de fora da instituição. Um clínico médico uma vez me disse: - Você agora é que tem a palavra correta. Um professor dificilmente diz isso a um aluno. Então, como eu lido com a singularidade? Isso é muito sutil em termos pedagógicos, pois há sempre um currículo em opacidade na singularidade. Mas esse é o problema fundamental da educação e um horizonte denso e distante no que concerne ao trabalho com a formação, ou seja, compreender e mediar a formação como experiências de sujeitos concretos. É aqui que as identidades se colocam como mediadores fortes dos processos formativos. Não há como se trabalhar com formação fora desse registro. Do contrário, seremos meros burocratas dos sistemas educacionais.

ENT – Gratíssimos, professor Dominicé.

PD – Obrigado.